Atenuar a fome
Editorial
Os sucessivos eventos de estiagem prolongada no Nordeste têm sido marcados por alguns avanços nas medidas de convivência com as secas, seguidas, porém, de retrocesso causado pela descontinuidade no fluxo dos recursos financeiros imprescindíveis ao equacionamento de seus problemas. A região, pela irracionalidade desse tratamento, paga um preço muito elevado que se reflete em seu desenvolvimento. Como o Ceará tem 93% de seu território alcançado pelo semiárido, os efeitos mais consequentes nele se operam.
Exatamente agora, quando está caracterizada uma das maiores estiagens das últimas décadas, os trabalhos de pesquisa e desenvolvimento da pesca e da aquicultura do Dnocs estão enfrentando os embaraços da burocracia do serviço público, comprometendo a produção e o consumo de pescado pelas populações assentadas nas áreas mais sofridas. A partir da caracterização do quadro de seca e do longo período de baixa pluviosidade a ser enfrentado, uma ação como esta deveria receber atenção prioritária do poder público.
A memória dos governantes é muito curta. O desconhecimento da história recente do País contribui para esse clima de indiferença e de falta de sensibilidade para com as iniciativas positivas, oriundas do próprio governo, para o enfrentamento dos quadros de subalimentação. A Comissão Técnica de Piscicultura do Dnocs, criada pelo ministro José Américo de Almeida, durante a seca de 1932, representa um exemplo bem-sucedido de política pública.
Confiada ao cientista Rodolfo von Ihering, já em 1935 ela demonstrava o quanto poderia ser feito para corrigir a carência de proteína animal entre as populações espalhadas pelos rincões nordestinos. Os açudes públicos começaram a ser transformados em fontes produtoras de peixe de águas interiores, mais acessíveis ao poder aquisitivo do sertanejo. Os grandes açudes foram dotados de centros de pesquisas, de estações de piscicultura e promovida a produção de alevinos para o povoamento das águas represadas.
Além do suprimento de proteína para o nordestino flagelado, Rodolfo von Ihering foi mais adiante: transformou sua experiência na maior escola latino-americana de pesca e piscicultura, formando inúmeros pesquisadores; desenvolveu o método de inseminação artificial em peixe; povoou açudes; estimulou a criação do pirarucu em cativeiro; e disseminou a tilápia do Nilo pelos reservatórios do semiárido.
Fruto dessa inventiva experiência, o Ceará produz 25 mil toneladas de tilápia, liderando a classificação nacional. Poderia ser muito maior, pois a disponibilidade de 100 milhões de alevinos, forma embrionária do peixe, corresponde apenas a 35% da capacidade dos locais de reprodução. O Dnocs de depara, portanto, com mais um ciclo de interrupção de projetos construtivos. Desenvolveu a tecnologia, montou a infraestrutura de produção, mas não dispõe de recursos para o custeio dos centros de pesquisa e de criação do pescado.
A desnutrição crônica do sertanejo foi parcialmente atenuada. Todavia, maior consumo de proteína animal, com valor nutritivo excepcional, mudaria a geografia da fome.
Fonte: Diário do Nordeste