Sobre a transposição do Rio São Francisco

Por Cássio Borges

Prefácio

Toda nação tem seus grandes projetos: aqueles que chegam ao conhecimento de todos e são motivo do imaginário popular. Nós, brasileiros, temos os nossos e já fomos bem sucedidos na realização de alguns deles, apesar do custo e das dificuldades na execução. A construção de Brasília, por exemplo, foi um desses grandes projetos que precisou da corajosa e obstinada determinação de um Presidente da República para que se tornasse realidade. A hidroelétrica de Itaipu foi outra grande realização do povo brasileiro. Embora entre as nossas grandes realizações como povo, haja, também, os fracassos como a Transamazônica. O fato é que continuamos acalentando grandes sonhos, como o Veículo Lançador de Satélites e o submarino atômico que, muito lentamente, tem sido levado adiante pela Marinha nas suas instalações de Aramar. A EMBRAER, também, poderia ser citada como mais uma realização de sucesso do povo brasileiro, entre tantas outras, como a Petrobrás, por exemplo. Na lista de nossas desejadas grandes realizações como povo está, definitivamente, elencada a transposição de águas do rio São Francisco para o Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e para o Estado de Pernambuco, onde serão construídas as duas estações de bombeamento, ponto inicial do projeto.

Este livro, cujo título é “Integração do Rio São Francisco: Desenvolvimento Sustentável no Semi-Árido Setentrional”, de autoria do geólogo Taumaturgo de Lucena Torres, que tenho a honra de prefaciar, fala das dificuldades que esse empreendimento tem enfrentado desde quando foi idealizado, pela primeira vez, no ano de 1859, ainda no período imperial, até os dias atuais, quando se estabeleceu uma profunda e apaixonada discussão em torno de sua viabilidade técnica e econômica. A transposição, que prevê o desenvolvimento sustentável do semi-árido setentrional do Nordeste e da bacia do rio São Francisco, tendo como foco a fruticultura na região, é uma das prioridades  do atual governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

O problema das secas nos sertões nordestinos tornou-se mais inquietante, desde a época do Império,  quando, no período conhecido como a “grande seca”, ocorrida entre 1877 e 1879, segundo relatos da história, morreu de fome e de sede mais da metade da população afetada, calculada em 1,7 milhão de pessoas.

A institucionalização de um organismo governamental para consolidaras tentativas de resolver o problema nordestino com enfoque científico adveio com a criação, em 21.10.1909, da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), que, sob o comando do seu primeiro Diretor Geral, engenheiro Miguel Arrojado Lisboa, congregou especialistas nacionais e estrangeiros, entre eles os norte-americanos Roderic Crandell, Horace L.Small, Horace Williams, Geraldo Waring, entre outros, os quais realizaram estudos pioneiros de Cartografia, Botânica, Geologia, Meteorologia, Climatologia e de Hidrologia na região nordestina. A IFOCS nascia, assim, com a imagem e a semelhança de sua congênere, o Bureau of Reclamation, dos Estados Unidos, criado há, apenas, sete anos antes, em julho de 1902. Mas pela necessidade do Brasil, à època, requisitar do exterior especialistas em obras hidráulicas, “até então inexistentes em nosso país”, não há dúvida quanto à semelhança das atividades praticadas pelas duas entidades. O Bureau of  Reclamation é uma organização de engenharia de maior conceito e credibilidade em todo o mundo técnico-científico ligado à questão dos recursos hídricos, concebido, especialmente, para solucionar os problemas da região árida e semi-árida no oeste daquele país (1). Já no ano de 1912, a IFOCS elaborava o mapa do canal interligando o rio São Francisco com o rio Jaguaribe, cujo traçado se mantém até os dias atuais com poucas modificações. Ressalte-se  que, àquela época, não se dispunha do recurso da aerofotogrametria, como se deduz do depoimento  que se segue:

O engenheiro F.J. da Costa Barros, em Boletim da Inspectoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), edição de fevereiro de 1935, afirmou que o plano de ligação das bacias do rio São Francisco com a do Jaguaribe, na Estado do Ceará, “mereceu, já em 1912, por parte da Inspetoria de Obras Contra as Secas, especial atenção, tendo sido efetuados vários estudos topográficos na zona abrangida pelo projetado canal, os quais constituem objeto  de sua publicação No. 28 – Série I-G, que é o mapa referente ao canal São Francisco-Jaguaribe”.

  Pelos registros da história, a IFOCS reexaminou esse assunto no ano de 1919, chegando à conclusão que, para trazer água do rio São Francisco para o rio Jaguaribe, por gravidade, seria necessária a construção de um tunel de 300 quilômetros de extensão. O custo do empreendimento e as dificuldades tecnológicas da época, concluíram  pela inviabilidade  da obra. Somente em 1972, quando se anunciou o início da construção da barragem de Sobradinho, no rio São Francisco, a montante de Juazeiro, na Bahia, o enigmático problema da ligação das duas bacias voltou à baila, em face da elevação do nível das águas no lago criado. Entusiasta da referida transposição, o deputado cearense Wilson Roriz, de Crato (CE), levantou, novamente, a bandeira desse empreendimento.

O Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS, que sucedeu à IFOCS) examinou o assunto da forma como apresentado em face da construção da barragem de Sobradinho, que elevou as águas do rio São Francisco a mais de 60,00 metros de altura, tendo o engenheiro Genésio Martins de Araujo, daquele Departamento Federal, em seu parecer, assim se expressado: “A condição insofismável é, portanto, que, com base na barragem de Sobradinho, para se atingir Farias Brito pelo preconizado canal, sem bombeamento, como queriam os defensores da idéia, ter-se-ia que seguir um túnel desde Lagoa Grande, em Pernambuco, num desenvolvimento, em linha reta, de 242 quilômetros”.

A idéia da transposição de água do rio São Francisco foi resgatada novamente pelo DNOCS, em fevereiro de 1978, o qual promoveu, em sua sede, na Av. Duque de Caxias, em Fortaleza, Ceará, um seminário sobre “Planejamento de Recursos Hídricos”, tendo o professor Wilson Jordão Filho, da Internacional Engenharia, do Rio de Janeiro, proferido palestra sob o título “Grandes Transferências de Águas entre Bacias Hidrográficas”, sendo aprovada a tese da  “transferência de água a partir de outras regiões vizinhas com excesso de disponibilidade hídrica”. Maiores detalhes desse encontro, que reuniu 72 técnicos de nível superior, pertencentes a 21 entidades públicas e privadas de todo o Brasil, consta do Boletim Técnico do DNOCS, V.36, No. 1, jan/jun, de 1978.

Essa iniciativa do DNOCS teve ampla repercussão nos meios técnico-científicos nacionais, tendo a Revista INTERIOR, Ano IV – Nº 24, de maio/junho, de 1978, na seção Atualidades, assim se expressado: “Uma antiga e promisora idéia, por muitos considerada utópica, voltou a repercutir entre técnicos em hidrologia de todo o país: a transferência de águas entre bacias hidrográficas vizinhas… . A possibilidade foi novamente discutida durante Seminário de Recursos Hídricos, promovido pelo DNOCS, no início deste ano, e deverá ser estudada em profundidade a partir de 1979”.

Animado com a repercussão nacional favorável do primeiro encontro de especialistas em recursos hídricos do nosso país, novamente, em outubro de 1979, o DNOCS promoveu, em Fortaleza, o segundo encontro entre esses profissionais em um seminário que foi denomindo de “Ciclo de Palestras sobre Planejamento, Uso e Controle de Recursos Hídricos em Bacias Hidrográficas”, tendo o professor Theóphilo Benedicto Ottoni Neto, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, realizado uma palestra sob o título: “A Perenização Hídrica de Bacias Carentes do Nordeste-Uma Solução  Hidro-Energética”.

Através do Boletim Técnico do DNOCS, No. 39 (2): 127-144, jul/dez.de 1981, o engenheiro Manfredo Cássio de Aguiar Borges, então Chefe da Divisão de Hidrologia do DNOCS, publicou um trabalho técnico denominado “Subsídios aos Estudos de Transposição de Vazões dos Rios São Francisco e Tocantins para o Nordeste”, o qual inicia fazendo alusão ao desenvolvimento tecnológico que, certamente, poderá dar solução definitiva à execução do acalentado projeto de transposição de águas do rio São Francisco, não só para o rio Jaguaribe, no Estado do Ceará, como para as bacias do rios Paraíba do Norte e Piranhas-Açu, nos Estados da Paraíba e Rio Grande do Norte, assim se expressando: “já que as técnicas neste domínio tendem a receber novos impulsos”. O autor fazia referência à possibilidade de utilização da energia ociosa, “off-peak”, da Companhia Hidroelétrica do Rio São Francisco (CHESF) para bombear, a baixo custo, a água, a ser transposta. Abandonava-se, assim, a idéia da transposição das águas ser feita por gravidade, constituindo-se na conclusão mais importante dos dois seminários, acima referidos, promovidos pelo DNOCS. Segundo essa proposição, o bombeamento somente seria feito, em horário de tarifa reduzida de energia, o que viabilizaria o empreendimento.

Mas quem tomou a iniciativa decisiva foi o Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) e no dia 13 de janeiro de 1981, em solenidade realizada no auditório do Ministério do Interior, foram assinados os Editais de Concorrência para a realização de “Estudos de Previabilidade para Transposição de Águas dos Rios São Francisco e Tocantins para a Região Semi-Árida do Nordeste”. A época, era Ministro do Interior o Eng. Mário David Andreazza e Diretor Geral do DNOS, o Eng. José Reinaldo Carneiro Tavares. Sob o comando do DNOS, esse projeto ainda passou por vários estágios de aprimoramento em meio a um grande debate, a nível nacional, que se seguiu após o anúncio dessa licitação. A idéia inicial era  transferir 800 m3/s durante os quatro meses de enchentes normais do rio São Francisco, retirados do reservatório de Sobradinho, sendo beneficiados os rios Gurguéia, Itaueiras, Piauí e Canindé, no Estado do Piauí; o rio Salgado, afluente do Jaguaribe, no Estado do Ceará; o rio Piranhas-Açú, nos Estados da Paraíba e Rio Grande do Norte; e os rios Pontal, Garças, Brígida e Terra Nova, no Estado de Pernambuco. Esse volume, que seria transferido, corresponde à vazão média histórica que, anualmente, é despejado no Oceano Atlântico por falta de aproveitamento.

Esse projeto previa a construção da barragem Aurora, no rio Salgado, afluente do rio Jaguaribe, no município de Aurora, no Estado do Ceará, com um volume de 800 milhões de metros cúbicos de acumulação. Após uma reunião realizada naquele Departamento, no Rio de Janeiro, no segundo semestre do ano de 1986, da qual participamos, representando o DNOCS, a convite do engenheiro Paulo Poggy, Coordenador do Projeto, contando ainda com as presenças dos engenheiros Silvio Campelo e Alcimar Macedo, ambos da SUDENE, ficou decidido que a vazão a ser transposta deveria ser de 320 m3/s, abandonando-se a idéia inicial dos 800 m3/s, que significava a retirada de um volume global de 8.294.400.000 m3 do rio São Francisco, segundo os termos de referência da mencionada licitação. A reação a esse projeto, considerado, à época faraônico, foi de tal forma que o DNOS reduziu, mais uma vez,  a vazão para 280 m3/s, ainda assim considerada exagerada, até mesmo por aqueles que sempre se posicionaram favoráveis a esse arrojado empreendimento. Apesar disso, o projeto ficou engavetado por falta de decisão política, sob a alegação de que a sua execução deveria começar pela construção da barragem do Castanhão, no Estado do Ceará, que era considerada o “pulmão” do sistema de transposição. A barragem de Aurora, acima referida, foi, então, abandonada e substituída pela do Castanhão, com um volume d`água de 6,7 bilhões de metros cúbicos.

Com a extinção do Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS), no início de 1990, pelo então Presidente Collor de Melo, o DNOCS assumiu a responsabilidade de dar continuidade a várias obras daquele organismo federal, dentre elas, a do açude Castanhão. Somente no segundo semestre do ano de 1994 é que,  na sede do DNOCS, na Av. Duque de Caxias, em Fortaleza, quando se encontrava à frente do Ministério da Integração Regional (depois cognominado de Ministério da Integração Nacional) o norte-riograndense Aloísio Alves, o Projeto de Transposição das Águas do Rio São Francisco, foi re-analisado e revisto. Segundo consta, a nova versão desse projeto, se encontra na biblioteca daquela Autarquia, em Fortaleza. Com essa reformulação, a vazão foi reduzida de 280 m3/s para 150 m3/s, sendo de 70 m3/s na primeira etapa. O novo projeto beneficiava os Estados de Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba através do que, mais tarde, viria a ser chamado de Eixo Norte.  Ainda assim, a oposição dos que eram  contra  esse empreendimento continuou cada vez mais acirrada.

Logo no princípio do primeiro mandado do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ele designou o seu Vice-Presidente, José Alencar, para coordenar o Projeto de Transposição do Rio São Francisco tendo ele feito, junto com outros Ministros, visitas a todos os Governadores dos Estados, direta ou indiretamente, envolvidos nesse empreendimento. Mas somente no primeiro semestre do ano de 2004, o então Ministro da Integração Nacional, Ciro Ferreira Gomes, anunciava um novo projeto, que passou a denominar-se de “Interligação”, em substituição a “Transposição”, ressaltando o aproveitamento da infra-estrutura hídrica existente. No novo projeto foram introduzidas profundas modificações em relação às versões anteriores. Além do Eixo Norte, tradicionalmente objeto de estudos por parte do DNOCS, foi proposto o Eixo Leste, independente do primeiro, que beneficiará mais uma região dos Estados de Pernambuco e da Paraíba e, em especial, a cidade de Campina Grande. Desta forma, esse empreendimento, formado por dois sistemas independentes, garantirá o abastecimento de água, por todo o ano, às bacias hidrográficas localizadas na porção setentrional da região nordestina. Este novo projeto, definido pelo Ministério da Integração Nacional, estabelece uma vazão de 26m3/s para os dois eixos, podendo chegar a 127m3/s quando o reservatório de Sobradinho estiver cheio. Da vazão de 26 m3/s, caberá 18,5 m3/s ao Eixo Norte e 7,5 m3/s ao Eixo Leste.

A sinopse histórica dos estudos e projetos à indispensável “Interligação” comprova irrefutavelmente dever-se a esse atuante e quase secular organismo federal, o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas-DNOCS, nunca ter sido abandonada a idéia de ser, definitivamente resolvida a angustiante e economicamente desastrosa ocorrência das secas nos sertões do setentrião nordestino mediante a importação de água fluvial.

Em maio do corrente ano, o geólogo Taumaturgo Lucena Torres lançou, no Estado do Ceará, o livro “MOINHOS DE ÁGUA – Integração do Rio São Francisco Desenvolvimento Sustentável no Semi-Árido Setentrional” no qual o autor convida os seus leitores a ter, doravante, uma participação mais efetiva em todos os fatos e ocorrências dos intrincados caminhos que têm marcado esse empreendimento desde o ano de 1820 até os dias atuais, com maior ênfase a partir do primeiro mandato do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, numa perspectiva de que essa obra seja, realmente, iniciada e concluída, no mais curto espaço de tempo possível, já que não existem mais óbices técnicos ou jurídicos que possam impedir a sua construção. Para isso, decisivo foi, sem dúvida, o parecer do Supremo Tribunal Federal que autorizou a retomada do processo de construção e derrubou todas as liminares que impediam o início das obras, que deverão ser uma das grandes metas, sendo a maior e de máximo alcance social e econômica, a ser cumpridas pelo atual governo federal.

Cássio Borges é engenheiro civil, ex-Diretor Regional do DNOCS e de sua Diretoria de Estudos e Projetos tendo se especializado em Recursos Hídricos pela Escola Nacional de Engenharia e Pontifícia Universidade Católica, ambas do Rio de Janeiro.

(1) O Bureau of Reclamation construiu, até os dias atuais, cerca de 600 barragens em dezessete estados do oeste dos Estados Unidos, enquanto o DNOCS construiu 948 em oito estados nordestinos, sendo 326 açudes públicos e 622 em regime de cooperação com estados, municípios e particulares com uma acumulação total de água  superior  a 27 bilhões de metros cúbicos.